quarta-feira, 21 de setembro de 2011

JOVENS INDISCIPLINADOS

 O escriba Valdemir Mota de Menezes leu o texto abaixo e não concordou com a interpretação do professor Julio Groppa, pois os números da pesquisa de campo mostram que os alunos estão mutios rebeldes, desobedientes, irreverentes, desordeiros e transgressores, tornando cada vez mais difícil o professor lecionar, pois a desordem e o barulho quebra o clima para o estudo em sala de aula.

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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Jovens "indisciplinados" na escola: quem são? Como agem?

Julio Groppa Aquino

É sabido que a relação entre os jovens e as práticas escolares, nos dias atuais, é marcada por uma espécie de flagrante descontinuidade ou descompasso. Vejamos, de largada, ocasiões em que reconhecidos autores nacionais descrevem os efeitos dessa relação.
"Essas condições deterioradas [;da qualidade das escolas públicas brasileiras] , acompanhadas de um processo educativo descompassado dos sujeitos jovens e adolescentes, produzem como resultados o desinteresse, a resistência, dificuldades escolares acentuadas e, muitas vezes, práticas de violência, que caracterizam a rotina das unidades escolares" (Sposito, 2003, p.16).
"O espaço escolar, por isso, é visto pelos jovens de maneira ambígua: ora sobressai como um dos poucos lugares onde podem conviver com os amigos; ora revela-se como um lugar de conflitos, quer entre os próprios alunos, quer entre eles e os professores" (Cenpec; Litteris, 2001, p.46).

"A distância entre o mundo escolar e o mundo juvenil, com a conseqüente dificuldade de comunicação entre os dois, tem gerado um enfraquecimento da capacidade educativa da escola e favorecido uma socialização juvenil incompatível com os princípios éticos e democráticos. A escola torna-se, então, espaço da vivência da injustiça, do medo e da insegurança, quando não de pura reprodução dos valores racistas e sexistas de nossa sociedade, como demonstram inúmeras pesquisas.

Outras marcas dessa situação são a perda da motivação e o desinteresse dos alunos, além da precarização da qualidade do ensino como um todo, que tem levado a um baixo desempenho dos estudantes" (Corti; Souza, 2004, p.103).
A tomar pelas assertivas dos pesquisadores brasileiros da temática da juventude/escolarização, somos levados a reconhecer que temos diante de nós um quadro de ampla precarização e desagregação institucionais. Os efeitos, poder-se-ia dizer, são trágicos: desinteresse, desmotivação, baixo desempenho, fracasso, conflitos interpessoais, violência de múltiplas ordens.
Qual via possível para compreender tal estado de coisas? Eis, a seguir, uma possibilidade fecunda.
Em um texto lúcido e desconcertante, o eminente sociólogo François Dubet (1998) oferece uma análise arguta da contemporaneidade escolar francesa, a qual poderia, sem excessivos riscos de generalização, ser transposta à realidade brasileira.


Segundo ele, desinstitucionalização é o termo mais profícuo para designar as transformações dos "modos de produção dos indivíduos" nos atuais contextos societários. Isso porque uma instituição (escola, família, igreja etc.) seria definida como o conjunto de papéis e valores que fabricam individualidades por meio da interiorização de seus princípios gerais.


No que diz respeito à escola, Dubet suspeita que ela não mais deve ser tomada, a rigor, como uma instituição, visto que "cada vez mais tem dificuldade em administrar as relações entre o interior e o exterior, entre o mundo escolar e o mundo juvenil. (...) A tensão entre o aluno e o adolescente está no centro da experiência escolar" (p.28).
O sociólogo francês é taxativo. Tal modelo clássico de organização institucional teria se desestabilizado, dando lugar a uma crise progressiva que se desdobra em dois eixos: da escola fundamental à universidade, e dos grupos mais favorecidos aos menos.
O diagnóstico de Dubet para a propalada disjunção dos universos escolar e juvenil ancora-se na constatação de que o sistema escolar não mais oferece um verdadeiro enquadramento da vida juvenil, o que faz com que os adolescentes e jovens consigam mais "construir experiências do que interiorizar papéis" (ibid.).


No cenário institucional clássico, a personalidade individual (o jovem) posicionava-se como fundo ao passo que o papel institucional (o aluno) despontava como figura dos processos de socialização. Aqui, a crise anunciada revela-se de acordo com a seguinte equação: "No curso dos processos de desinstitucionalização, a personalidade pensa antes do papel. É ela que constrói o papel e a instituição" (p.31).
Pela trilha aberta por Dubet, é possível afirmar que a crise escolar contemporânea encontra sua expressão máxima no fato de os alunos terem de construir por si mesmos o sentido de sua vivência escolar, antes assegurada pela adesão aos lugares e papéis da institucionalização escolar.
Daí que a construção da subjetividade juvenil, antes contígua à vivência do papel discente, dar-se-ia agora num duplo registro: dentro e fora da escola. "É preciso crescer no mundo escolar e naquele do adolescente. Alguns o conseguem com facilidade. Outros, ao contrário, vivem apenas em um destes registros. Então sua experiência escolar se desfaz, ela não tem mais muito sentido se os professores não são capazes, por seu engajamento e seu talento, de construir as motivações que, via de regra, não são oferecidas aos alunos" (p.29-30).
Vejamos as vicissitudes da relação juventude/escola na atualidade, ou seja, as  quatro possibilidades de desfecho apontadas pelo sociólogo sob o timbre da "experiência subjetiva de formação de si":
1) a justaposição da subjetividade ao papel discente - quando "se percebem como os autores de seus estudos, suas paixões e interesses convergem, têm o sentimento de se construir e de se realizar nos estudos" (p.31);
2) a dissociação entre subjetividade e papel discente - quando "os indivíduos se formam paralelamente à escola e se adaptam à vida escolar não se integrando. (...) Estes alunos que se colocam entre parênteses, que desenvolvem condutas ritualísticas, sem verdadeiramente jogar o jogo" (ibid.);
3) a negativização da subjetividade pelo papel discente - quando "não podem jamais construir sua experiência escolar; que aderem com freqüência aos julgamentos escolares que os invalidam e os conduzem a perceber, a si mesmos, como incapazes. Neste caso, a escola não forma indivíduos, ela os destrói" (ibid.);
4) por fim, o antagonismo da subjetividade frente ao papel discente - quando "resistem aos julgamentos escolares, querem escapar e salvar sua dignidade, reagir ao que percebem como uma violência, retornando-a contra a escola. Eles se subjetivam contra a escola" (ibid.).
Tomemos a liberdade de designar, sem prejuízo conceitual, as quatro figuras discentes propostas por Dubet como, respectivamente: 1) diligente, 2) medíocre, 3) vitimizada, e 4) transgressora.
As quatro possibilidades de figuração institucional juvenil apontadas por Dubet não deixam dúvidas. Apenas no caso da figura diligente, amiúde rara e circunscrita a determinados segmentos sociais, temos algo que se aproximaria do efeito clássico da institucionalização escolar. As outras três seriam resultantes dos novos processos de desinstitucionalização escolar, nunca antes testemunhados com tamanha força. Ou então, que antes despontavam como efeitos colaterais, ou mesmo marginais, das práticas escolares cotidianas.
No que diz respeito às figuras medíocre (fruto da dissociação entre subjetividade e papel) e vitimizada (resultado da negativização da subjetividade pelo papel), temos aí, talvez, expressões fidedignas dos processos de exclusão pedagógico-escolar, em especial no segundo caso. Já no último, é patente a correlação entre a figura transgressora e o âmbito normativo-disciplinar. Trata-se daqueles alunos que, no mais das vezes, são tidos ora como "indisciplinados", ora como "violentos", ou, em ambos os casos, como "desordenadores" do cotidiano escolar.
É exatamente esse quinhão subjetivante que pretendemos focalizar daqui em diante. Quem são os "transgressores"? Como agem cotidianamente aqueles que se subjetivam contra a escola?

Uma aproximação concreta
Com o intuito de perscrutar alguns dos processos de socialização escolar juvenil em curso e, mais modestamente, os contornos concretos da figura institucional dos alunos "transgressores", realizamos uma investigação sobre a economia disciplinar de uma instituição escolar1, cujos resultados serão apresentados a seguir. O intuito é um só: examinar empiricamente as práticas discentes tidas como disfuncionais e/ou desagregadoras do funcionamento escolar cotidiano.
O contexto institucional pesquisado refere-se ao ensino médio de uma escola pública situada num bairro de classe média da cidade de São Paulo, a qual conta com um bom perfil organizacional: condições infra-estruturais adequadas, projeto político-pedagógico definido, quadro docente e equipe profissional atuantes. Quanto à clientela, típica de uma escola estatal, ela é marcada por uma delineada diversidade sócio-econômica.
Especificamente com relação ao ensino médio, recorte empírico da investigação, a escola conta com seis turmas, respectivamente, duas para cada série, as quais atendem um total de 182 alunos, subdivididos em 89 rapazes (49%) e 93 garotas (51%).2
Foram tomadas como objeto de análise todas as "ocorrências disciplinares" (leia-se, os encaminhamentos dos alunos para a coordenação escolar, a título de uma "providência" disciplinar) das seis salas de ensino médio durante um ano letivo. Trata-se, grosso modo, daquela gama de ocasiões que, por uma ou outra razão, envolveram transgressões explícitas da ordem escolar e que demandaram a intervenção das autoridades técnicas (mormente a coordenação pedagógica).
O trabalho inicial da pesquisa foi, então, o de converter os registros escritos de cada uma dessas ocasiões em uma espécie de "boletim de ocorrência", no qual constavam as informações relativas a: série, data, autor(es) da reclamação, alvo(s) da reclamação, reclamação, alegação do(s) reclamante(s), alegação do(s) reclamado(s), deliberação, agravantes.
Numa segunda etapa da pesquisa, a investigação concentrou-se nos seguintes temas: 1) freqüência das queixas; 2) alvos das queixas; 3) autores das queixas; 4) tipos de queixa; 5) deliberações formais.

A indisciplina cotidiana
Quanto à freqüência das ocorrências, elas somaram 93 durante todo o ano letivo,3 sendo subdivididas em 31 para cada série - o que nos leva a crer que não há diferença alguma no que se refere à equação série/(in)disciplina.
Em mais da metade dos casos, a ocorrência tinha como alvo um aluno específico - 51 ocorrências (55%). Outras 29 ocorrências referiam-se a eventos envolvendo dois alunos (31%). As restantes aplicavam-se a grupos de três (07), quatro (01), cinco (03), seis (01) e oito (01) alunos.
Um dado curioso refere-se às datas das ocorrências. Tendo em mente que o ano letivo recobre, a rigor, 11 meses, o mês de novembro foi o mais abastado em termos de ocorrências, com 20% delas - o que indica um aumento significativo das inflexões disciplinares por ocasião da aproximação do término do ano letivo. Os outros dois meses "difíceis" foram abril e setembro, respectivamente, meados dos dois semestres letivos. Vejamos o quadro abaixo:
Se levarmos em conta os 200 dias letivos, temos que houve, genericamente, uma ocorrência disciplinar a cada dois dias. No entanto, não há uma distribuição temporal mais ou menos homogênea delas. Ao contrário. Em determinados dias "tumultuados", as ocorrências se acumulam. É o caso de 28/04, 29/05, 25/08, 29/09, 19/11 e 24/11, os quais tiveram uma média de três ocorrências diárias - o que, pelo avesso, indica a existência de vários dias pacatos.
Quanto aos autores das queixas, das 93 ocorrências, 06 foram efetuadas pelos próprios alunos, 42 pelos professores, 45 pelo staff4, e 01 pelo cantineiro da escola. Mostra, talvez, de que boa parte dos eventos disciplinares não ocorreu necessariamente no interior das aulas, já que mais da metade deles foi reportada pelo staff (incluída a equipe técnico-pedagógica e os funcionários). Adiante entenderemos a razão para tal.
Mais um dado significativo sobre os professores queixosos: há disparidades quanto ao encaminhamento de alunos. Enquanto um docente é autor de mais de uma dezena de queixas, outros dois não o fizeram uma vez sequer. Cinco deles realizaram encaminhamentos disciplinares uma vez apenas, enquanto outros cinco entre três e seis vezes no decorrer do ano letivo. Talvez aqui tenhamos indícios de que, no quesito disciplinar, há uma razão diretamente proporcional entre o tipo de relação pedagógica estabelecida em sala de aula e o quantum de ocorrências disciplinares.
No que diz respeito aos alvos das queixas, temos que, do número total de 182 alunos, as ocorrências englobaram 73 deles. Isso significa que 40% dos alunos estiveram envolvidos em contratempos disciplinares. Um número significativo que, mais adiante, será atenuado em confronto com a natureza das queixas disciplinares das quais esses alunos foram objeto.
Desses 40%, quase um terço é composto por garotas - o que denota, talvez, uma derrocada do monopólio masculino quanto à imagem usual do fenômeno disciplinar escolar.
Vejamos os números agora dispostos segundo as três séries:
Há um dado instigante que se refere ao volume de ocorrências, por aluno. Se imaginarmos, hipoteticamente, que o número de até três ocorrências é aceitável (número previsto pelo próprio Regimento Escolar), temos que a imensa maioria dos alunos não atingiu esse patamar. Dos 73 alunos "indisciplinados", metade deles foi alvo de apenas uma ocorrência. A freqüência das ocorrências por aluno é nitidamente decrescente, como se pode atestar na distribuição abaixo:
É possível concluir que, do montante total de 182 alunos, apenas 15 (8,2%) poderiam ser considerados "indisciplinados", "transgressores" ou coisa que o valha.
Debruçando-nos mais detidamente sobre os "delitos" praticados por tais alunos, deparamos com uma configuração peculiar. Tomemos o exemplo dos dois alunos da 3� série, recordistas de ocorrências disciplinares. Ambos foram alvo das seguintes queixas: atraso na entrada em aula; atraso no retorno à aula depois do intervalo; desinteresse; excesso de faltas; recusa a pedido do professor; grosserias; ausência de material de trabalho; dormir em aula; uso indevido de documento de identificação; adulteração de nota de avaliação.
Como se pode observar, temos diante de nós um quadro bastante distinto das imagens alarmistas sobre o segmento discente jovem na atualidade. Aqui, os alunos "difíceis" parecem ser muito mais pacatos do que o que deles se costuma supor.
Adentramos, assim, a categoria central de nossa análise: o tipo e natureza das reclamações contra os alunos.
Mediante o universo de queixas apresentadas, organizamos as ocorrências segundo quatro grandes categorias. A saber: 1) infrações regimentais; 2) atitudes indesejáveis; 3) conflitos entre alunos; 4) conflitos entre aluno(s) e professor(es) ou staff.
Claro está que as duas últimas referem-se a situações que evocavam a idéia geral de violência, segundo a qual estava em risco a integridade física ou moral do outro. Por sua vez, a categoria "atitudes indesejáveis" referia-se a práticas que, grosso modo, poderiam ser descritas como derivadas do campo genérico da incivilidade, enquanto a categoria "infrações regimentais" remetia às burlas das normas escolares propriamente.
Vejamos mais detalhadamente aqueles atos enquadrados em cada uma das categorias selecionadas e sua frequência. Eis, diante de nós, um retrato bastante detalhado dos costumes discentes considerados "desviantes".
� infrações regimentais
cabular aulas (16)
ausência de material de trabalho (13)
atraso na entrada em aula (12)
atraso no retorno à aula após o intervalo (9)
saída da sala de aula sem autorização (4)
atraso na chegada à escola (3)
danificação de mobiliário (3)
excesso de faltas (3)
danificação de dependências físicas (2)
interrupção externa de aula sem autorização (2)
tabagismo (2)
adulteração de nota de avaliação (1)
alimentação fora do horário (1)
demora no retorno à aula após saída autorizada (1)
destruição de documento (prova) (1)
não devolução de advertência assinada (1)
não realização de deveres (1)
não retorno à aula após saída autorizada (1)
pichação em mobiliário (1)
pichação em paredes (1)
uso de telefone celular em aula (1)
uso de diskman em aula (1)

� atitudes discentes indesejáveis
recusa ao pedido do professor (6)
abstenção das atividades (3)
brincadeira despropositada (3)
conversas paralelas (3)
desinteresse (3)
desonestidade (3)
atividades alheias à aula (2)
dormir em aula (2)
respostas irônicas (2)
brincadeira constrangedora
cantorias em aula (1)
descumprimento de acordo de trabalho (1)
dissimulação (1)
dispersão (1)
dormir em outros espaços escolares (1)
grosserias (1)
obstaculização das atividades (1)
questionamentos irônicos (1)
recusa às decisões do professor (1)
uso de palavrão (1)
uso de mentiras (1)
zombaria (1)

� conflitos entre alunos
agressão física (3)
constrangimento/humilhação (2)
ofensas (2)
agressão verbal (1)
ameaça de agressão (1)
lançamento de objetos contra outrem (1)

� conflitos entre aluno(s) e professor(es) ou staff
ameaça de nudez em sala de aula (1)
afrontas (1)
deboche (1)
humilhação (1)
insultos (1)
ofensas (1)

O quadro abaixo explicita a freqüência de tais atos. As grandezas são reveladoras por si só. É importante observar que o montante de 93 ocorrências converteu-se em 107, já que algumas ocorrências continham mais de um tipo de queixa. Atentemos para a discrepância dos resultados:
Duas evidências saltam aos olhos de imediato: a quantidade ínfima de conflitos entre alunos e professores/staff, assim como o volume acentuado de burlas regimentais.
Dentre as infrações regimentais, as recordistas são, por ordem de freqüência: cabular aula (16 aparições), ausência de material de trabalho (13), atraso na entrada em aula (12), atraso no retorno à aula após o intervalo (9), saída da sala de aula sem autorização (4) etc.
Não obstante o caráter corriqueiro das infrações regimentais mais usuais, talvez o quesito "atitudes indesejáveis" desponte como a "pedra no sapato" dos profissionais da educação contemporânea, uma vez que se refere àquele conjunto de atos disruptivos que não se restringem à inobservância das normas escolares stricto sensu. Embora em menor número (26 ocorrências ao todo), representam problemas disciplinares porque são tidos como atos de incivilidade, os quais ferem as expectativas de convívio em sala de aula. Exemplos, por ordem de freqüência: recusa ao pedido do professor (06 aparições), abstenção das atividades (03), brincadeira despropositada (03), conversas paralelas (03), desinteresse (3), desonestidade (3) etc. Aqui, mais uma vez, temos um quadro bastante previsível dos pequenos atos discentes refratários ao convívio pedagógico. Note-se também que tais ocorrências foram objeto de queixa apenas dos professores.
É importante registrar o fato de que, enquanto as "infrações regimentais" são reportadas em sua maioria pelo staff escolar, as "atitudes indesejáveis" são sempre reportadas pelos professores, o que sinaliza o fato de que temos duas ordens de inflexões disciplinares em curso: uma, mais corriqueira, ligada à transgressão das normas escolares gerais, e outra, menos freqüente mas de maior impacto, mais afeita ao âmbito relacional da sala de aula.
Vemos, portanto, que o cotidiano escolar concreto, do ponto de vista disciplinar, talvez muito pouco se assemelhe ao que se tem alardeado sobre ele. Ao contrário. Aqui, os alunos praticam as mesmas velhas burlas e recusas já há tanto conhecidas. Burlas e recusas que fazem parte dos rituais institucionais clássicos e que, em última instância, constituem prerrogativas do lugar discente.
Quanto ao quesito "conflitos entre alunos", é curioso notar que todas as ocorrências estão circunscritas à 1� série, o que pode indicar um impacto positivo da própria institucionalização no decorrer do ensino médio. O fato de não haver nenhuma ocorrência dessa natureza nas duas séries subseqüentes é mostra da normalização atitudinal aí em curso.
Somando-se essa evidência aos pouquíssimos conflitos entre aluno(s) entre professor(es) ou staff (03 ocorrências), há de se reconhecer que temos diante de nós uma paisagem deveras pacífica e cordata. Se, a rigor, o predicado "conflito" vem se tornando um dos crivos ajuizadores da atmosfera civil e profissional da escola pública brasileira, faz-se necessário impugnar seu uso indiscriminado, visto que as evidências concretas (em que pese a singularidade do contexto pesquisado) parecem contradizer sobremaneira os discursos do senso comum bem como dos próprios profissionais sobre a suposta "desordem" reinante no cotidiano escolar público.
Prosseguindo nosso exame, resta-nos enveredar pelos tipos de deliberação formais relativas às ocorrências disciplinares. Os encaminhamentos foram de duas ordens: medidas regimentais e medidas pedagógicas e/ou reparatórias.
O que diferencia a natureza das duas deliberações é o caráter formalista da primeira (já que prevista no "Regimento Escolar" em vigor) ante ao caráter mais propositivo da segunda, esta mais balizada por uma certa idéia de reciprocidade, em alguns casos, e de aconselhamento, em outros.
Conheçamo-las, e também sua freqüência.
� medidas regimentais
advertência oral - 30
notificação aos familiares - 09
convocação dos familiares - 07
suspensão das atividades por um dia - 06
repreensão por escrito - 05
advertência por escrito - 03

�medidas pedagógicas e/ou reparatórias
recomendação quanto a providenciar material escolar - 11
recomendação quanto às atitudes em sala de aula - 11
retratações verbais - 07
recomendação quanto a observar os horários - 06
limpeza de dependências e mobiliário - 03
entrega de trabalho escolar - 02
supervisão de um professor/tutor - 01
trabalho comunitário - 01
informação quanto a procedimentos de saúde - 01

Como se pode observar, as 107 queixas apresentadas geraram um total de 60 medidas regimentais e outras 43 pedagógicas e/ou reparatórias. Quatro ocorrências não tiveram encaminhamentos de nenhuma ordem. Deve-se ressaltar que as medidas regimentais eram aplicadas em caso de reincidência ou gravidade da ocorrência. No entanto, é preciso destacar também que ocorrências disciplinares similares nem sempre tiveram o mesmo tipo de encaminhamento.
Por fim, há de se apontar o fato de que medidas extremas não foram tomadas em nenhum caso no decorrer do ano letivo pesquisado.

Considerações finais
Iniciamos nosso percurso a partir de um problema simultaneamente teórico e empírico: a alegada descontinuidade entre os mundos escolar e juvenil brasileiros. Enveredamos, então, pela contextualização conceitual proposta por François Dubet, destacando sua formulação acerca dos diferentes modos de subjetivação consoantes e/ou concorrentes ao papel discente clássico. Elegemos, por fim, como recorte analítico a figura da subjetividade transgressora, adversária aos ditames de tal papel, aproximando-a do fenômeno da indisciplina discente.
A fim de melhor compreender o enquadramento institucional da parcela transgressora do alunado, propusemo-nos a investigar a sucessão de atos disruptivos (por meio das ocorrências disciplinares) levados a cabo no cotidiano de uma escola pública de ensino médio, durante um ano letivo.
Os resultados da investigação são surpreendentes visto que apontam para um cotidiano institucional atravessado - jamais sobredeterminado - por pequenos delitos (mormente contra as normas escolares stricto sensu) que em nada se assemelham à imagem hiperbólica que se tem de um interior escolar ora desordenado, ora violento. Nenhum rastro de degeneração do papel institucional discente foi testemunhado, pois.
Em certa medida, pode-se concluir que o cotidiano da escola pesquisada é modelo de logro da ordem disciplinar clássica. Aqui, triunfa um conjunto de usos e costumes nitidamente prosaico e rotineiro. Desta feita, nada de novo parece haver sob o sol escolar investigado, a ponto de corroborarmos a tese da desinstitucionalização escolar pelo viés disciplinar/transgressivo. Ao contrário.
Se partirmos da evidência de que a maior parte das ocorrências disciplinares volta-se contra as próprias normas internas instituídas, faz-se necessário indagar sobre a própria legitimidade destas. Não é o caso aqui. Que se registre, apenas, a premissa de que normas escolares são sempre mutáveis. Em certo sentido, os atos transgressivos talvez estejam sinalizando tão-somente um desafio histórico para as práticas escolares em questão. É hora de construir novas balizas normativas dos fazeres cotidianos, tanto no interior das salas de aula quanto fora delas (Aquino, 2003).
De outro modo, é preciso lembrar que onde houver normas haverá compulsoriamente burlas, já que estas são constitutivas daquelas, e vice-versa. Isso significa que a transgressão pontual de determinados procedimentos-padrão é algo perfeitamente previsível, saudável até, se atentarmos para a dimensão atitudinal (sempre colateral, frise-se) do trabalho pedagógico-escolar. Se não, qual a razão de ser dos "Regimentos Escolares", "Normas Disciplinares", "Manuais de Convivência" e afins?
Contudo, nosso percurso investigativo não permite concluir, em absoluto, que a relação entre o universo escolar pesquisado e seus jovens protagonistas seja marcada por harmonia, extensão e compasso.
Se, por um lado, não pudemos subtrair correlações explícitas entre o advento da subjetividade transgressora e os processos de desinstitucionalização escolar, por outro, é certo que não podemos estender tal raciocínio às duas outras figuras subjetivas concorrentes: os alunos medíocres (aqueles que se adaptam mas não se integram à vida escolar) e os vitimizados (aqueles cuja subjetividade é invalidada pela segregação pedagógica) - ambos não focalizados nesta investigação. Some-se a isso o fato de que se trata, talvez, da maioria esmagadora do alunado, em oposição às outras duas figuras pontuais (o diligente e o transgressor). Se o trabalho empírico dessa pesquisa for de fato representativo das práticas escolares concretas, nem sequer estamos falando de 10% do alunado.
Aquelas outras duas experiências subjetivas propostas por Dubet, mais do que dignas de precaução teórica e empírica, apontam para experiências limítrofes (implícitas, no caso dos medíocres, e explícitas no caso dos vitimizados) da ordem escolar contemporânea, visto que tais alunos em situação de vulnerabilidade pedagógica se converterão, mais cedo ou mais tarde, nos candidatos em potencial às longas fileiras do fracasso escolar. Vulnerabilidade pedagógica aqui se traduz como presságio da exclusão civil - marca principal da organização societária brasileira.
Nessa perspectiva, são eles os arautos da desinstitucionalização escolar - agora pelo viés estritamente pedagógico - e, por extensão, da desregulamentação do mundo público, cujas repercussões nos modos de vida e convívio democráticos são insondáveis, mas deveras temerosas. São eles, portanto, os que têm prioridade quanto a nossos esforços e cuidados, ambos inadiáveis, se ainda desejarmos alçar a instituição escolar à condição de epicentro do espaço público democrático.

Referências bibliográficas
AQUINO, Julio Groppa. (2003) Indisciplina: o contraponto das escolas democráticas. São Paulo: Moderna.
DUBET, François. (1998) "A formação dos indivíduos: a desinstitucionalização". Revista Contemporaneidade e Educação, ano 3, v.3, p.27-33.
______. (1996) Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget.
CENPEC; LITTERIS. (2001) O jovem, a escola e o saber: uma preocupação social do Brasil. IN: CHARLOT, Bernard. (org.) Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Porto Alegre: ArtMed.
CORTI, Ana Paula; SOUZA, Raquel. (2004) Diálogos com o mundo juvenil: subsídios para educadores. São Paulo: Ação Educativa.
SPOSITO, Marília Pontes. (2003) Os jovens no Brasil: desigualdades multiplicadas e novas demandas políticas. São Paulo: Ação Educativa.


1 A complexa organização dos dados foi realizada em conjunto com a coordenadora pedagógica do ensino médio a qual, por razão de sigilo, não será identificada. Sem sua inestimável colaboração, não teria sido possível a execução deste trabalho.
2 Dados referentes a 2003, recorte temporal da pesquisa.
3 Frise-se também que houve outras sete ocorrência envolvendo professores (que aqui não foram contabilizadas).
4 Staff aqi se refere ao grupo de profissionais escolares exceto os professores, ou seja, os técnicos de apoio educativo ("bedéis") e a propria equipe técnico-pedagógica (diretor, vice e diretora e coordenadora pedagógica).

� 2011  Faculdade de Educa��o da Universidade de S�o Paulo

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